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Um dia faço um blog

Oxalá alguém soubesse.

Disseste que vinhas jantar. E eu fiquei à tua espera. Sentada nesta cadeira de madeira cor de tijolo, olhando para o copo de vinho meio vazio. Fiquei assim algum tempo. Horas talvez. Sim, certamente que foram muitas horas. Horas vazias em que a mente apagada me impedia de pensar noutra coisa além do desconforto daquela cadeira e no sabor amargo da garrafa de vinho que já ia a meio. Prometemos guardá-la para um dia especial, lembraste?
Disseste que vinhas jantar. E eu preparei o teu prato favorito. Apesar de ser o meu dia, eu preparei tudo como se fosse o teu. Comprei flores para o centro da mesa. Sempre te disse que adorava flores mas que apenas as queria receber em dias especiais. Nunca as recebi. Hoje comprei-as, de mim para mim. São tulipas, meu amor. Tulipas brancas. As minhas favoritas, apesar de não o saberes. Dizem que simbolizam o perdão.
Comprei um vestido da mesma cor do vestido que usei na nossa primeira noite, cor de pérola, delicado como se fosse de seda. Não é demasiado curto. Sei que não gostas. Gostas que os use em ocasiões especiais. Tal como a garrafa de vinho que seria aberta numa ocasião especial. Quis que fosse hoje.
Pela minha mente vagueiam agora pensamentos aleatórios que surgem quando olho para cada detalhe da sala despida de personalidade. Nada naquele espaço me faz lembrar da pessoa que fui um dia. Apenas tu. Tu preenches aquela casa que sempre foi apenas tua. Tu, em cada canto para que olho. Apenas tu. Aquela casa eras tu. Tu. Só tu. A tua cor favorita em todas as paredes, o teu cheiro que se foi alterando ao longo dos anos e que hoje sinto melhor que nunca. Cheiro forte, denso, insuportável.
O copo está agora vazio. A garrafa também. Assim como a minha alma.
Tento agora recordar-me da última vez que fui feliz contigo. Não me lembro. Agora não estava sóbria. Estava ali, sentada na cadeira de madeira cor de tijolo, a olhar para a parede vazia, agarrando o copo agora vazio daquele vinho forte. Continuo a esperar-te. Continuo a esperar que algo me fizesse lembrar de rasgos de momentos felizes. Não resultou.
O jantar há muito que ficou frio. São agora 4h30 da manhã e oiço a porta a abrir. Eras tu. Finalmente tu.
O teu cheiro a álcool emanava ao primeiro segundo em que entraste. Hoje não tinha medo. Afinal de contas, hoje era um dia especial.
Avançaste pesadamente para a sala e proferiste algumas palavras das quais não me recordo na íntegra.

 

A tua mãe deixou-te este bilhete.

 

Disseste tu, tão secamente que mal consegui compreender.
Naquele momento, sem como nem porquê, lembrei-me que não via a minha mãe há meses. Não me recordo há quantos. Na verdade, o tempo parece ter deixado de fazer sentido.
Naquele momento, sem como nem porquê, percebi a podridão de homem que estava ao meu lado.
Talvez os sucessivos meios copos que fui bebendo ao longo da noite tenham ajudado a dizer-te que queria ir embora. Agora. Que não te suportava mais. Que o vestido cor de pérola me ficava mal porque não escondia todas as marcas da tua violência atroz. Que o teu cheiro a álcool e a prostitutas baratas me enojava. Que eu merecia mais. Que me havia esquecido de quem tinha sido um dia. Que me apagaste enquanto mulher. Que me tiraste tudo. Que a minha vida não fazia sentido. Que não te amava. Que me tinha entregue à monotonia e ao medo de te deixar. Que as tulipas brancas deviam ter sido oferecidas por ti. Que o jantar devia ter sido num restaurante, à luz das velas, enquanto desfrutávamos do meu prato favorito. Que o vinho seria aberto ao final da noite, pelo dois, antes de fazermos amor. Amor. Que devia ter-me sentido amada. Que não me lembrava da última vez que me tinha sentido amada. Que ia embora, de vez. Agora.
A tua voz rouca interrompeu-me para me relembrar aquilo que todos os dias me dizias. Que era tua. Apenas tua. A tua mão pesada estava agora a apertar-me o pescoço. Não conseguia respirar. Só pedia que terminasse. Que me soltasses. Que me deixasses ir. Sabia que aquele seria o nosso fim. Soube-o no momento em que me sentei naquela cadeira de madeira cor de tijolo com um vinho que esperava ser aberto há cinco anos.
E foi. Foi o fim. O meu fim. A minha vida terminara nos teus braços, envolvida no teu cheiro a água de colónia barata misturada com o odor de álcool e tabaco, depois de te implorar que me deixasses viver.

 

Feliz aniversáio, filha. 25 anos e uma vida pela frente.

 

Dizia o bilhete da minha mãe. Oxalá ela soubesse.

 

*TEXTO DA MINHA AUTORIA*

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